Em 2000 o país estava submerso da cintura aos pés. Os
cadáveres usavam suas barrigas inchadas de fome como bóias e flutuavam sobre as
águas. Os corpinhos de crianças sugados pela cólera eram atirados pelas janelas
ao lixo hospitalar. E os doentes ensaiavam as medidas do caixão em camas bem
ordenadas em tendas.
As cheias comiam o país sem mastigá-lo a cada segundo. As
tampas das fossas da cidade vomitavam fezes, os helicópteros pescavam pessoas
por cordas em cima dos tectos e eu ouvia o primeiro-ministro, Pascoal Mocumbi,
falando em cima de ruídos a Rádio Moçambique; a sua voz ora caía, ora
levantava-se quando colocava a antena em pé.
Recordo-me que foi neste mesmo ano que mataram Cardoso.
Depois das vidas tiradas pelas cheias, as AKM’s do país decidiram tirar a vida
de Cardoso. Cardoso foi abatido tal como são sacrificadas os pombos nos
telhados das casas. Há pombos em todos telhados das casas da cidade, mas há
pombos, como Cardoso, que não poisam só as patas no telhado e ficam a espera do
próximo em silêncio. Cardoso era aquele tipo de pombo que poisa no telhado,
cria ruído que se amplia em toda casa, arrulha e cava toda poeira do tecto. Era
um pombo que irritava.
Meu Deus, o país depois de abatido pelas cheias, levantou-se
com as suas estradas com hematomas e foi abater Cardoso. Abateram Cardoso na
rua e já não havia cheias para arrastarem o seu corpo e nem helicópteros para
puxá-lo com as suas trouxas de verdade para uma zona alta onde as AKM’s não
chegavam.
Abateram Cardoso com um, dois, três, cem, mil tiros. Não o
queriam morto uma vez, apenas, por isso somaram os tiros, multiplicaram os
movimentos dos indicadores nos gatilhos. Recordo-me que 2000 o país estava
submerso da cintura aos pés. Os cadáveres usavam suas barrigas inchadas de fome
como bóias e flutuavam sobre as águas. As cheias mataram o país e no mesmo ano
Cardoso foi assassinado com o país.
* Sérgio Raimundo é poeta, escritor e jornalista. É membro do Comité Editorial d´Alternactiva.
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