Por: Daúde Amade
Esta é uma reflexão não habitual de se fazer, de um lado é por causa da essência meramente de rua do movimento ou cultura Hip-hop, na manifestação do rap. Mas, por outro lado, é também por causa do contexto e significado que as artes tomam em Moçambique e em particular a vertente rap que é uma célebre contundente na sua abordagem, o que condena este meio de expressão na maior parte à censura pelos mass media.
No entanto, embora haja pouca matéria escrita ou quase nenhuma desta arte no contexto académico nacional, nunca tarda que um fenómeno social, como é o caso da música, seja de reflexão filosófica, sociológica, ou de outra ciência social e humana que visa discernir os passos ou divagares do Homem enquanto ser pensante e emotivo encubado na sociedade, venha a público.
Este escrito tem duplo objectivo, visa (1) trazer à baila a mudança de paradigma na história musical do poeta de rua Duas Caras e (2) retirar do universo hip-hop uma linhagem de pensamento ou convicções que devem ser percebidas e mantidas intactas, pois bem se sabe que a estrutura de pensamento sustenta-se inabalável quando as suas estacas estão profundamente enraizadas no ser que as diz e as faz. Sustentado a isso, far-se-á uma ilação em torno das possíveis mudanças de paradigma no percurso musical de Duas Caras.
A cultura hip-hop nas suas múltiplas dimensões de expressão - o Break, o MC, o DJ e o Graffiti - quando nasceu fez-se conhecer enfatizando quais eram os paradigmas que defenderia. Entenda-se paradigma como a maneira de ver o mundo e extrair dele o que é de coerente para o desenvolvimento de uma comunidade que tem como base a expressão e não a limitação da criatividade e do devanear que é o característico dos poetas ou músicos. Ou ainda, como advoga Thomas Kuhn em “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1998, p.13), são “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas que, algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” Daí, pode-se aplicar esta definição ao contexto dos fazedores de uma dada arte como é o caso do rap pois pressupõe-se que uma arte não seja norteada pelo nihil[2], mas sim por uma filosofia ou modelo que a faz defender com unhas e dentes as convicções desse colectivo.
O que permeia o universo Hip-hop tendo o rap como via mais abrangente por causa da oralidade são os gritos superpotentes e meramente enraizados na vida social e que nunca fora da sociedade se formam.
O rap utiliza-se da poesia oral como forma de manifestar e criticar as mazelas sociais, configurando-se numa função de estabilização social. Expressa a realidade vivida na periferia e nas favelas das cidades. Os rappers usam o poder da voz para atuar na melhoria das condições de vida das comunidades periféricas e denunciar a marginalidade aparente (NASCIMENTO & SIMON, p. 7).
Indo mais ao ponto concreto, o rapper Duas Caras de acordo com o seu percurso histórico enquanto poeta de rua ou defensor de filosofias existenciais mais justas e coerentes em sociedade, apresentou-nos duas facetas que essencialmente se podem resumir nitidamente por duas das suas músicas a saber: a música “Geração TV”, que é aí que está o primeiro Duas Caras e é o que se encontra como um poeta de rua ávido em ressuscitar da sociedade moderna os bons costumes, a educação do Homem e a convivência social correcta e mais do que isto, um posicionado contra a globalização tecnológica e defensor de valores e saberes locais. E o segundo Duas Caras, que é fora dos padrões do modelo paradigmático antes apresentado por ele mesmo, nasce na segunda fase de si enquanto rapper ou poeta de rua. Nesta fase encontra-se um Duas Caras que se desvincula dos princípios de ressuscitar os bons costumes, a educação e convivência social e sepulta ele mesmo os próprios poemas ou músicas que escreveu. Este Duas Caras encontra-se essencialmente na música Dinda.
Ao que se não deter ao entendimento do distanciamento do conteúdo das músicas Geração TV e Dinda de Duas Caras pode até crer que não foram escritas pela mesma figura, pois há uma abordagem de duas mensagens largamente distanciadas no seu conteúdo e que prescrevem filosofias tão antagónicas que se é incapaz de crer que a mesma mente tenha gerado ideias tão adversas.
Sendo os paradigmas responsáveis por trazer numa sociedade um levantamento coerente dos problemas ou anomalias e a consequente formulação de soluções modelares de acordo com os problemas como defende Thomas Kuhn, será que se pode dizer que o Duas Caras da música Geração TV abandonou este paradigma pois se tinha solucionado as suas anomalias e se tenha atingido a revolução, ou apenas esteve a deixá-lo por perceber que é utópico e optou em trazer-nos uma música que é de carácter antagónico ao paradigma que antes ele defendia e que, consequentemente lhe propiciaria fazer mais shows ou capitalizar a sua arte?
Complexo é este factor de supor ter esgotado a problemática que abordara na música Geração TV, pois como ainda demonstra-se empiricamente os hábitos da sociedade líquida como Bauman chamou-nos, continuam constantemente se metamorfoseando e numa eterna fluidez de fundamentação de tudo o quanto exista encontra-se o homem líquido fundamenta-se. Com isto infere-se que não ocorreu revolução alguma, portanto é prematuro deixar de transmitir os bons costumes por via da poesia de rua, o rap.
E porque nada resiste ao capitalismo selvagem de hoje, nem mesmo os cultores da verdade, os artistas, isto nota-se por eles serem “os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar” (BAUMAN, 2001, p. 10) pois, embora nos tenha legado o percurso histórico que eram elas as figuras sagradas os faróis das massas rumo à emancipação, o que de facto verifica-se hoje é o inverso.
A coerência e a consciência desenvolvida do primeiro Duas Caras, o da Geração TV, faz valer a ideia de que o Hip-hop na concreta vertente do rap faz-se de acordo com a crítica social e que deste modo espera-se que das críticas levantadas venha a surtir uma mudança de atitude e responsabilidade que os homens tomam perante o que fazem e deixam de fazer.
Apresentando as vicissitudes dos nossos tempos diz o Duas Caras da Geração TV (2004) que:
Hoje acordei bem-disposto e me encostei ao TV,
muitas horas de imagem mas não gostei do que vi.
Cenas de sexo explícito em plena hora do chá,
agora não dá, Bugs Bunny, foi-se embora, Ta tá.
Quando era puto essa porcaria de porno não havia,
era maning[3] desenho animado e pouca pornografia.
Mas hoje em dia,??? Sujas palavras vomitam,
Putos modernos nem sequer em Pai Natal acreditam.
Não querem rendas nas roupas nem ver as penas do Poupas,
não querem Mingas nem Wazimbo, querem Jennifer Lopez.
Agora, eles querem tatuagens logo no Umbigo,
gastam mesadas em DVD’s e em jogos de vídeo.
Em logs do tipo, “não existe idade pró amor”,
Prematuramente se perde a integridade de uma flor.
Nos nossos dias, putos querem crescer depressa,
falsificam a idade pra não perder a fiesta.
Os meninos do Wambo não se sentam mais à fogueira,
Tão sa cagar p’essa treta sobre a paz e a bandeira.
Não há maneira puto, a globalização tá aí,
A invadir os lares desta geração TV (CARAS, 2004).
Portanto, partindo de um paralelismo eminente do que se viveu ontem e hoje, isto é, do que se viu antes da globalização, do poder da técnica, etc. faz-se na Geração TV uma comparação demolidora das estruturas dos valores de hoje. A Geração TV é uma poesia rebelde que reduz todo falso desenvolvimento social à nada e tem suas bases no princípio de que no período anterior a globalização “os pontos andavam nos Ís”. Duas Caras na Geração TV convictamente alude que o desligar-se da caixa de cores, a televisão, pode ser o desligar-se de todo o mal e ascender aos valores que ele prega como um cidadão poética e politicamente correcto.
Sem dúvida alguma, aí nota-se um Duas Caras militante de uma causa que se estivermos com os olhos postos à realidade veremos que é o pão de cada dia. Vê-se um poeta angustiado pelos males da globalização e o que Severino Ngoenha denomina de “o quarto poder”, isto é, os mass media, pois ao seu entender disseminam na sociedade o mal deixando inerte o uso dos bons valores em detrimento da globalização.
Após se ter constatado a linha de pensamento do primeiro Duas caras, o demolidor da Geração TV, é premente que se apresente o segundo Duas Caras, o da música Dinda de modo que se verifique a mudança de paradigma que é o cerne deste escrito, e o rebate das ideias do primeiro Duas Caras pelo segundo.
Se o primeiro Duas Caras é um poeta do povo, o iluminante das massas, o segundo Duas Caras, do Dinda é um sem escrúpulos, um poeta que põe abaixo os princípios morais e dentre os versos mais essenciais da sua música encontramos os de cariz materializante da mulher. São versos que estreiam a música Dinda os seguintes:
Andas a mamar royal[4] ou quê filha?
Isso é rabo, é um saco ou quê filha?
Os cotas[5] não aguentam com o style
Os putos não aguentam com o style.
Mãe esse teu rabo é, é um problema
Por isso que as vezes o 3[6] discute com a Ema,
Mela com Marinela, são vocês que fazem
os madalas[7] discutirem com as velhas.
São esses versos que contrariam a própria existência criativa do primeiro Duas Caras, pois vêem-se que não se conduzem a resolução de problemas que importam de facto a solução urgente, são versos mais ligados ao lado subjectivo e lúdico do rapper. Neste segmento de ideia, vê-se que o Duas Caras do Dinda, já não se detêm a visão apologética contra os maus hábitos, maus princípios. São versos que olham a mulher como objecto sexual e evidencia através dos seus versos os protótipos de uma mulher e chega à concluir que a “sapiolibido” (gosto ou decaída sexual por alguém por causa da inteligência que este ostenta) não lhe motiva a estar com uma mulher, mas os seus atributos corporais é que lhe cativam e remata:
(…) E tenho pensado,
Que é melhor uma burra boa
Que a inteligente sem rabo.
(…) Coxa bem grossa,
Rabo bem big que preciso três mãos para roçar[8].
Aqui existe uma mudança, pior uma contradição ideológica, entre o primeiro e o segundo Duas Caras, eis o que Bauman nos legava em seus escritos que nos tempos que correm haverá uma fluidez de tudo quanto se possa imaginar, até a verdade, a fé e posicionamentos existenciais se farão oscilar como se estivessem içados em um pêndulo.
No cenário pós-moderno do presente, falar de uma vanguarda não faz sentido. Um artista ou outro pode agora assumir uma atitude recordada dos tempos do Strum und Drang da alta modernidade – mas, sob as circunstâncias presentes, isso seria mais uma pose do que uma posição. Despido da significação do passado, não predizendo nada e não impondo nenhuma obrigação – um símbolo mais de bravata do que de rebeldia, e certamente não de fortaleza espiritual (BAUMAN, Z. 1998, p. 127).
Eis o que se trata no discurso musicado em Dinda, não há um fio condutor das ideias rumo a uma revolução ou rumo a formas mais complexas e coerentes de dizer ou fazer arte, a arte da vida. Não há motivo aparentemente rebelde ou de existência de necessidade de mudança de alguma atitude como se verificara com os movimentos nascidos no período colonial, como os dos poetas e estudantes da época colonial, como se viu em Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, etc.
O refrão da Geração TV na voz de Sam The Kid, manda desligar a televisão pois dela fluem mil e um males e assim alertam-nos que haja “atenção à manipulação com ódio, sexo e violência para a população (…)”. Assim, Sam The Kid intercalando sua voz aos dizeres de Duas Caras, consubstanciava que a televisão apura falsa informação, difunde sexo e mais mediocridades evidentes no dia-a-dia. No entanto, o Duas Caras da música Dinda parece-me não ter ouvido o Duas Caras da Geração TV pois ele surge com uma música pornográfica, ou que reduz o corpo da mulher a uma mera exposição mercantilista, o vídeo da mesma não é de se aconselhar as crianças a ver pois há uma exibição de nádegas e raparigas desfilando os seus corpos desnudados.
Em Duas Caras da música Dinda, para Bauman (Ibidem) nota-se que “já não se fala de missões, de advocacia, de profetização, de uma e única verdade firmada para estrangular todas as pseudoverdades”, há um falar porque a boca não se deve calar, há um falar porque calar não gera cifras na conta bancária e pouco importa a contradição do que se diz com a realidade, portanto há um falar até do banal pois a arte na pós-modernidade perdeu o signo da identificação, isto é, já não se pode distinguir o que é e o que não é objecto de reflexão das artes, daí um choque entre os valores e a dita arte.
Quiçá os versos supracitados da música Dinda sejam o de menos contundente para sustentar a ideia de que ocorreu na poesia de rua de Duas Caras um giro ideológico daquilo que eram as suas certezas e princípios a defender e difundir, no entanto o vídeo clipe da música Dinda (confira-se as imagens abaixo) demonstra que estamos perante uma difusão de pornografia, estamos perante uma agressão visual dos miúdos que tanto escutam o “Tio Duas”, pois ainda têm em mente que os educa e os dá bons princípios.
Dentre tantas imagens de carácter inadequado à conduta artística e dignitária da figura Duas Caras, se evidenciam as que acima constam. Como se justifica acima nas imagens trata-se de uma difusão pornográfica, e se nos seus tempos de infância isto não havia como sustenta o Duas Caras da Geração TV, que “quando era puto essa porcaria de porno não havia, era maning[10] desenho animado e pouca pornografia”, o que lhe leva então, em tempos posteriores difundir o que antes censurava e que não fora fonte de sua educação, ou por outra o que pretende transmitir com este tipo de conteúdo as crianças de hoje que lhe ouvem? Mas, ao fundo, por que dessa mudança tão profunda na sua poesia de rua, em que momento se liquefez o poeta ávido e se voltou contra suas próprias crenças?
Para um possível levantamento de respostas há que crer que o pensamento é o de mais incoerente e infundado elemento nas artes hoje. E deste modo, para o que não sabe ao fundo o que de facto defende, ou que quer fazer da arte seu sustento, seu ganha-pão, as vicissitudes do capitalismo se podem apoderar e se perder a figura de princípios rígidos como fora com Duas Caras.
Em suma, há que vincar que o hip-hop na vertente rap em Duas Caras, tornou-se fonte de rendimento, até chegar ao ponto de dar um giro cósmico sobre aquilo que eram as suas certezas. Como é comum se ouvir nos fazedores deste género musical no círculo nacional, já não são tempos de fazer rap por amor a camisola, quer isto de forma clara dizer que a arte por amor, por entrega e por defesa de uma causa justa e nobre hoje não faz sentido. E isto, prega-se por causa da emergência dos tempos da economia de mercado e da elitização de géneros artísticos como é o caso do rap, ou seja, o rap nos tempos que correm não se faz porta-voz da periferia e nem de quem lá vive, atingiu um status que já entra em qualquer lugar e fala até de forma abonatória sobre assuntos que os devia censurar e pregar com que morressem.
O rap já não resiste a nada, está atado ao laissez-faire a sua temática e abordagem votam pelos princípios mais banais. E se o princípio que norteava o hip-hop na sua génese era uma mensagem contundente vinda do anonimato, de alguém sem identidade, se antes se pautava em jamais dar as caras, hoje como nunca antes fez-se, se expõem as caras pois bem sabem que nada de supremo defendem e por isso não há porque estar anónimo ou sob o signo de um pseudónimo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2001.
________. O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1998.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Cientificas. 5a ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
NASCIMENTO, Danielli A. & SIMON, Criastiano B. Hip-hop e Marginalidade: Possibilidades de Leitura, s/d. Disponível em < http://www.uel.br/eventos/sepech/sepesch08/arqtxt/resumos-anais/DanielliASNascimento.pdf> Acesso em: 18 de Março de 2017
Referências das músicas
CARAS, Duas & KID, Sam The. Geração TV. In: Poesia Urbana Vol. 1. Porto: Horizontal Records. 2004. Disponível em: < http://1009dades.blogspot.pt/2010/12/2-caras-sam-kid-geracao-tv.html?m=1> Acesso em: 16 de Março de 2017
CARAS, Duas & FINGERS, Twenty. Dinda. 2014. Disponível em: < http://mp3xd.eu/pt/baixar/duas-caras-dinda-2RpbmRh.html> Acesso em: 16 de Março de 2017
*Extraído blog:tenacidadedaspalavras.blogspot.com/2017/12/a-mudanca-de-paradigma-na-poesia-de-rua.html?m=1
0 Comentários