Diretor do IESE sugere que Moçambique crie grupo com países da região para lidar com a crise em Cabo Delgado. Para Salvador Forquilha, solução passa pelo fortalecimento das instituições do Estado e ações de inclusão.
Os investigadores do Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique (IESE) estão em Cabo Delgado a visitar as áreas aterrorizadas por grupos armados. Após dois anos de insurgência violenta no norte de Moçambique, o saldo é de centenas de mortes e dezenas de milhares de afetados. Os pesquisadores chegaram a Mocímboa da Praia dias depois do primeiro ataque de insurgentes a instituições do Estado, registado no dia 5 de outubro de 2017. Em setembro de 2019, o instituto publicou o primeiro estudo sobre o tema, relacionando os ataques com a radicalização islâmica na região.
Diante da complexidade do que os pesquisadores viram no norte do país, o IESE realizou em dezembro uma conferência internacional "à porta fechada" em Maputo, em que convidou integrantes do Governo, investigadores que observam no terreno casos semelhantes na Tanzânia, Nigéria e Mali e testemunhas dos ataques em Cabo Delgado. O evento teve uma sessão inteira dedicada a testemunhos.
Em entrevista à DW África, o diretor e pesquisador do IESE critica a falta de cuidado de opiniões sobre a insurgência sem base em observações in loco e elementos concretos. Salvador Forquilha diz que esta insurgência sofreu uma espécie de transformação - de um levante "meramente religioso" para um "movimento militarizado". O pesquisador considera impossível que a crise de segurança na região seja resolvida sem um intercâmbio com outros países que enfrentam fenómenos semelhantes, e sugere que Moçambique se deveria aproximar da Tanzânia, Quénia e Uganda.
Forquilha defende também o fortalecimento das instituições do Estado - inclusive do Exército, da polícia e dos órgãos de administração pública - e considera que os focos de crise, tanto no norte como no centro de Moçambique, devem ser enfrentados também com ações concretas de inclusão económica, política e social, para que todos os moçambicanos se sintam a integrar "um projeto de país". O pesquisador considera que adotar medidas nesse sentido será o principal desafio que o Presidente Filipe Nyusi enfrentará no segundo mandato, se quiser lidar adequadamente com a crise em Cabo Delgado.
DW África: A imprensa moçambicana noticiou pelo menos dois eventos violentos em Cabo Delgado já em 2020. Após dois anos, é possível dizer que a insurgência está baseada na radicalização religiosa?
Salvador Forquilha (SF): É um fenómeno extremamente complexo, cuja dimensão armada começou no dia 5 de outubro de 2017, quando ocorreu o ataque mais conhecido às instituições do Estado, na vila de Mocímboa da Praia, no norte de Cabo Delgado. Desde então, o fenómeno tornou-se mais complexo. Infelizmente, há pouca informação - um ou outro órgão de imprensa tem difundido algumas notícias para fora da região - mas eu estou convencido de que o grosso do que acontece realmente não é de conhecimento público. Nós decidimos fazer uma pesquisa preliminar sobre o assunto e publicámos [em setembro de 2019]. Depois, montámos um programa de pesquisa dentro do IESE inteiramente focalizado no problema de Cabo Delgado. Ali, provavelmente há vários conflitos, e tentámos seguir um pouco mais as pistas deste fenómeno com base em trabalho de campo.
O relatório que publicámos tenta sumarizar os elementos que encontrámos no campo e dar algumas indicações sobre as origens e as dinâmicas do fenómeno e, a partir daí, dentro do grupo de pesquisa, tentámos desenvolver outros projetos. Há uma insurgência extremamente complexa, que não pode ser reduzida a uma única causa. Há muitos elementos visíveis que contribuem para o desenvolvimento da própria insurgência. Ao ponto de hoje parecer que estamos perante uma situação completamente fora de controlo. Claramente há uma dimensão religiosa importante, mas há elementos ligados à própria dinâmica da economia local muitas vezes ilícita - tráfico de madeira, marfim, pedras preciosas... Há uma economia ilícita local que acaba por desenvolver grupos criminosos que, por sua vez, alimentam o próprio conflito. Há necessidade de aprofundar mais [as pesquisas] para identificar esses outros grupos - além do grupo com uma tendência um pouco mais religiosa. Pelo menos, no início, [a questão religiosa] era o caso, mas há a possibilidade da existência de outros grupos que se aproveitam da situação caótica que se vive na zona.
DW África: O que deve fazer de diferente o Governo do Presidente Filipe Nyusi, que caminha agora para o segundo mandato, para lidar com essa crise no norte do país?
SF: A situação está num ponto tal que é muito difícil trazer uma receita. Talvez o Governo, em algum momento, tenha perdido a oportunidade de lidar com o assunto de uma forma um pouco mais apropriada. Lembro-me das primeiras declarações da polícia a exigir que [os insurgentes] entregassem as armas em uma semana, [caso] contrário iriam "limpar" o grupo completamente. Não se lida com uma situação desta natureza desta maneira. Moçambique poderia também ter observado experiências de outros países - como a Tanzânia, Quênia, Mali, Nigéria, Burkina Faso - para fazer face a essa questão. Mas é claro que isso exige também um conhecimento profundo sobre a própria realidade.
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